Existe aqui em Curitiba a assim chamada "Boca Maldita", um espaço aberto com tradição desde 1956 de servir de espaço para críticas sem restrição. Foi uma região com certo destaque, por exemplo, na época da campanha pelas Diretas Já na década de 1980.
Era uma proposta ousada, talvez além do seu tempo, e em alguns sentidos prenunciava certos espaços atuais na Internet, principalmente em redes sociais e certos órgãos de imprensa. Isso porque há uma tensão inerente na proposta. Um espaço reservado e publicamente anunciado para a finalidade de expressar críticas livremente sempre será, na melhor das hipóteses, um exercício ativo de desenvolvimento da capacidade de ouvir.
Isso porque, naturalmente, o que se fala tem consequências, até mesmo quando ninguém dá ouvidos. O próprio ritual de escolher um conteúdo e verbalizá-lo para outra pessoa faz com que esse conteúdo nos pareça de alguma forma respeitável e digno de expressão, mesmo quando não o é.
Vemos um fenômeno muito similar na Internet. A ampla disponibilidade de espaços com as mais variadas características de privacidade, publicidade, monitoramento e linguagem tornou possível e talvez necessária a existência de uma variedade quase caótica de rituais e expectativas. Sendo, como é, um atribuidor de significados, o ser humano empresta a espaços neutros significados e intenções mesmo quando elas realmente não cabem, com resultados em todo o espectro do trágico ao hilário.
Vejamos um exemplo. J.K. Rowling é a autora dos livros de Harry Potter. É uma pessoa que se tornou mundialmente conhecida por expressar um conteúdo de fantasia e que comenta assuntos vários na Internet, como tantos outros de nós o fazem. Publicou seu primeiro livro em 1997, e concluiu a série original de histórias de Harry Potter em 2007. Talvez por ter alcançado um público amplo e apresentar um assunto tão próximo da expressão de fantasias secretas, tornou-se rapidamente uma pessoa muito ouvida e influente, apesar de rigorosamente falando não haver um motivo claro para sê-lo.
Muito recentemente ela postou comentários no Twitter que foram entendidos (justamente ou não) como sendo críticas de algum tipo às pessoas transgênero. Alguns se desapontaram ou ficaram magoados, outros acharam necessário contestá-la publicamente.
Pessoalmente penso que ela estava errada, mas também penso que cabe manter as coisas em perspectiva. Rowling não estava anunciando uma política a ser adotada, não estava declarando uma regra a ser seguida, não estava nem mesmo pedindo que concordassem com ela. Estava emitindo uma opinião, expressando uma percepção dela, e essa percepção se mostrou incômoda e impalatável para muitos.
O que cabe em uma situação como essa? Rowling deveria ter ficado calada? Deveria ter tido e expressado outra opinião? Quais são exatamente os graus adequados de liberdade e responsabilidade de expressão dela, e em que se sustentam?
Quais são as responsabilidades dos fãs de Rowling e do público em geral? É possível e cabível simplesmente discordar dela? Essa discordância pode ou deve ser silenciosa? É adequado e/ou necessário responder a ela? Com quais graus de publicidade, ênfase e gentileza?
São muitas perguntas, e as respostas não são particularmente óbvias, nem tem por que ser simples. Cada público e até mesmo pessoa terá expectativas e vulnerabilidades diferentes.
Queiramos ou não admitir, estamos em um mundo complicado, em que não há atitudes universalmente aceitáveis e confiavalmente seguras. É uma constatação amarga, que nos nega a esperança de ter uma vida inocente e tranquila. Sempre podemos vir a magoar alguém, e sempre estamos sujeitos a não entender como ou por que isso aconteceu. A colocação de Rowling não foi correta, mas era o que seria esperado poucas décadas atrás, na época em que ela consolidou sua personalidade e valores. Não é particularmente rara hoje tampouco; a única particularidade é que foi expressa por uma pessoa muito pública e que era amplamente percebida como tendo opiniões inovadoras e liberais, pelo menos em um certo tipo de assuntos.
Penso que devemos reservar para as pessoas que estimamos o direito de dar passos em falso, e contrabalançá-lo reservando para nós próprios tanto o direito quanto o dever de perceber e sinalizar esses passos em falso. Esperar que outras pessoas reais, de carne e osso, sejam de alguma forma referenciais infalíveis de algum tipo de virtude abstrada não é muito realista, e provavelmente não é muito generoso para com essas pessoas tampouco. Todos nós cometemos erros e podemos nos beneficiar da possibilidade de aprender com eles, em vez de ser simplesmente hostilizados por tê-los cometido.
Esse foi só um exemplo. A arte de lidar com expectativas de decisões simples em um mundo cada vez mais complicado é delicada. Hoje especificamente estamos falando muito de algo chamado "cancelamento", um conceito novo que envolve repudiar, ignorar ou mesmo hostilizar diretamente pessoas influentes. É uma atitude que me parece um tanto instintiva e ingênua, e que pode ter sido um fator significativo na radicalização política que levou à infeliz eleição do Bolsonaro em 2018.
Há quem atribua a eleição do Bolsonaro ao PT. Não é um raciocínio que me pareça claro ou convincente; não cabe a nenhum político ou partido político se sentir responsável pelo grau de consciência dos eleitores que já decidiram que não vão apoiá-lo. Cabe aos próprios eleitores que votam em um candidato, e não aos opositores desse candidato, se sentir responsáveis pela influência que esse candidato venha a obter. Nesse sentido, o eleitorado brasileiro traiu covardemente a si próprio em 2018. É um fato grave, imoral, profundamente desonroso, que eu não espero conseguir perdoar durante o meu tempo de vida restante e não pretendo gastar muito tempo restante. Eleitores que não valorizam seu próprio voto não deveriam usá-lo, deveriam abrir espaço para quem se importa sim com as consequências das eleições.
Mas não parece ser essa a auto-imagem que os trinta por cento que ainda hoje apóiam o Capitão desesquilibrado tem de si mesmos. Eles, como seu candidato, são pessoas que sonham com um mundo de decisões fáceis e situações simples. Muitas parecem acreditar que se forem consistentes em sua vontade de desprezar e insultar os fatos objetivos, as opiniões discordantes e até mesmo a complexidade real da existência acabarão por conquistar um certo grau de respeitabilidade por, suponho, terem sido genuinamente teimosas e infantilizadas.
Lamento, povo. Não funciona assim. Às vezes o que parece ser teimosia estúpida e infantil realmente é teimosia estúpida e infantil. Criem juízo e parem de ter essa expectativa arrogante de que outros lhes devem o respeito que vocês não tem por si mesmos. A existência não é o seu parquinho de quintal onde vocês podem construir castelos de areia, ficar emburrados, e voltar para casa para repetir o ritual no dia seguinte. Se não querem ser adultos, não esperem ser tratados como tal.
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